"O que Raul Seixas e Elvis Presley tem haver com liberdade de expressão segundo o TJDFT?"
- Flávia Valéria
- 10 de out. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de dez. de 2022

A resposta está na argumentação inusitada, profunda e precisa feita pelo Desembargador DIAULAS COSTA RIBEIRO na APELAÇÃO CÍVEL nº 0713958-08.2021.8.07.0001 TJDFT (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios), que versou sobre situação envolvendo o então Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo e a Senadora Kátia Abreu, que quase em ritmo de prosa, o desembargador condutor do voto divergente, deixou o julgado bem diferenciado, em termos e exemplos, que incluiu além de Raul Seixas e Elvis Presley, Roberto Carlos, Gabriel García Marquez, Jorge Luís Borges, Murilo Rubião, Jorge Amado, Franz Kafka e outros.
Antes de destacar alguns tópicos do julgado, é importante destacar que a disseminação de desinformação (fake news) é um desafio para o Estado Democrático de Direito, e, portanto, para os atores do sistema de justiça, principalmente frente a atual velocidade tecnológica e os mecanismos de disseminação da informação pelos meios digitais, que permitem um alcance gigantesco de pessoas, com potencial de intervenção massiva.
Já abordei anteriormente no texto LIBERDADE DE EXPRESSÃO NÃO SE CONFUNDE COM LIBERTINAGEM DA EXPRESSÃO, algumas implicações da desinformação, bem como as tramitações legislativas em andamento.
No presente post, proponho fazer a distinção entre a divulgação de notícias feita por um indivíduo cujo alvo seja uma pessoa natural ou jurídica, daquelas desinformações engendradas pelo que se convenceu chamar atualmente milícias digitais, concentrando-se no primeiro tópico. Em outro momento abordaremos as tais milícias digitais.
Para tanto, o pitoresco voto divergente e a ementa do acórdão são únicos e vale a pena a transcrição de alguns trechos para leitura, por fazer a distinção entre:
a) liberdade de criação x liberdade de expressão;
b) imprensa x rede social;
c) liberdade de expressão x fake news;
d) tratamento conferido a fake news comparando-a a uma praga; e,
e) importância do poder judiciário nesse combate:
De tão diferenciada a ementa, resolvi aqui transcrever alguns dos tópicos, que merece leitura atenta:
“10. A garantia constitucional da liberdade de expressão é o direito de expor uma opinião. A garantia da liberdade de informação ou de imprensa é o direito de divulgar um fato verdadeiro na Imprensa. A garantia da liberdade de criação é o direito de inventar “fatos” no campo restrito das Artes, da ficção, de que é exemplo o realismo fantástico de Gabriel García Marquez, de Jorge Luís Borges, de Machado de Assis, de Murilo Rubião, de Jorge Amado, de Franz Kafka.
11. O direito de informar um “fato verdadeiro” é prerrogativa da Imprensa na sua forma tradicional e digital. A Constituição Federal assegura, inclusive, o sigilo da fonte (CF, art. 5º, XIV). Mas “Imprensa” não é mera manifestação em rede social. Ninguém se transforma em Imprensa e em Jornalista, destinatários da proteção constitucional dada à comunicação social, por uma mera afirmação pessoal, apenas por se dispor de acesso regular ou eventual a alguma aplicação nas redes sociais da rede mundial de computadores (Internet).
14. A proteção constitucional à liberdade de expressão não se estende àqueles que divulgam notícia falsa (fake news), sobretudo para os que inventam o fato e dão a ele aparência de verdade para destruir a reputação de adversários políticos.
15. Fake news é uma praga tão nociva quanto o vírus da covid-19. Identificar e combater notícia falsa é um compromisso da humanidade para o qual o Poder Judiciário é ator relevantíssimo e indispensável, cabendo-lhe separar o que é direito do que é simulacro de direito ou abuso de direito.
16. Cabe ao Poder Judiciário punir e reprimir aquele que cria e/ou divulga notícia falsa (fake news); aquele que, “sem saber o que é Direito, faz as suas próprias leis” (Roberto Carlos).”
Os detalhes foram trazidos pelo próprio voto divergente, informando: contextualizada ao âmbito político do momento (março de 2021), a mensagem buscou retirar a credibilidade da Senadora Kátia Abreu enquanto guardiã dos valores e propósitos republicanos que se esperam de quem estiver à frente daquela Comissão. Sem hipérboles, a Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal funciona sob os olhos do Mundo.
Pontuou, ainda, a distinção entre fake news e fait divers:
“A liberdade de expressão está profundamente ligada à liberdade de imprensa já que foi a partir da invenção da imprensa que as questões relativas à liberdade de expressão se colocaram de uma forma mais premente em termos sociais e legais por a imprensa permitir a divulgação de opiniões ou informações por um número indeterminado e não controlado de leitores.”
"Fait divers não se confundem com fake news. Fait divers (Roland Barthes. Structure du fait divers. In: Essais Critiques. Paris: Seuil, 1964) não são ilegais nem antiéticos. Fait divers é a “notícia cujo interesse reside naquilo que tem de insólito, extraordinário, surpreendente” (Houaiss). É a forma atrativa de contar um fato e não o fato em si. Como a mesma música pode ser tocada e/ou cantada de diversas formas, haverá uma que conquistará mais ouvintes. Interpretações autorais não tipificam plágio, assim como os fait divers buscam atrair leitores, ouvintes e telespectadores sem perder a referência de um fato verdadeiro. A adoção de fait divers pela Imprensa não configura abuso de direito, por si só. Como o intuito de prejudicar figura pública não restou demonstrado, a liberdade de expressão e o direito à informação devem prevalecer no caso concreto.”
“Na liberdade de expressão pode-se ter opinião contrária ou favorável sobre vinhos, cores, músicas, pessoas; pode-se gostar ou não de Barca Velha, de azul, de vermelho, de Machado de Assis, de Shakespeare, de Fernando Pessoa, da Bíblia, dos Profetas, de Bach, de Mozart, de Villa Lobos, de Tonico e Tinôco. O direito de ter “uma velha (ou nova) opinião formada sobre tudo” (Raul Seixas) é garantido pela Constituição Federal. Pode-se também achar Raul Seixas um chato e sua citação neste voto absolutamente desnecessária (CF, art. 5º, IV). Nada disso é proibido. E é, também, proibido proibir (Caetano Veloso).”
E, também, fake news:
“O direito de criação e de expressão da atividade artística comporta a “invenção da verdade” e tem proteção constitucional (CF, art. 5º, IX). Fora das Artes, a invenção e a divulgação de fatos não têm proteção constitucional. No Brasil, nunca teve. É o que se chama fake news.”
O desembargador DIAULAS COSTA RIBEIRO prosseguiu, afastando o requerimento da defesa, fazendo o distinguishing do caso tratado na apelação e o tema de repercussão geral nº 562 STF (ante conflito entre a liberdade de expressão de agente político, na defesa da coisa pública, e honra de terceiro, há de prevalecer o interesse coletivo, da sociedade, não cabendo potencializar o individual).
Nesse cotejo com o tema da repercussão geral nº 562 STF, o desembargador DIAULAS, afastou a incidência da repercussão geral informando que:
“Não há proteção constitucional para Ministro de Estado que inventou o fato e deu a ele, por meio de notícia fraudulenta divulgada na rede mundial de computadores, publicidade para ofender a honra subjetiva e objetiva de notória adversária política, a Senadora Kátia Abreu, que cumpria, no Senado Federal, a função de Presidente da Comissão de Relações Exteriores.”
“Importa rememorar que “O reconhecimento do ato ilícito e sua consequente condenação não exigem a prova inequívoca da má-fé da publicação que extrapola os limites da informação, à semelhança do que ocorreu na jurisprudência norte-americana, difundida pela doutrina da actual malice, que não se coaduna com o ordenamento brasileiro” (REsp 1897338/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/11/2020, DJe 05/02/2021, g.n.).”
Interessante julgado, não é? No meu ponto de vista foi bem esclarecedor. Fiquei até imaginando como deve ter sido essa sessão e a leitura do voto... Fica claro que inventar fatos é próprio da fantasia inerente ao meio artístico, não sendo permitida aos demais, fora desse meio artístico, muito menos a agentes políticos que deveriam ser os primeiros a manterem o decoro e o compromisso com a informação social.
Quanto às milícias digitais, é preciso acompanhar as decisões do STF nos autos do INQ 4874 instaurado a partir de indícios e provas da existência de uma organização criminosa, com forte atuação digital, que se articularia em diversos núcleos – político, de produção, de publicação e de financiamento –, com a finalidade de atentar contra a democracia e o Estado de Direito no país.
O Supremo Tribunal Federal, na instauração do Inquérito 4781, utilizou o termo fake news como sinônimo de notícia fraudulenta, enquanto no RE 685493/SP foi empregado no sentido de disseminação de notícia falsa.
Abordarei as milícias digitais em post específico.
E voltando ao julgado, para finalizar este post, cito a expressão do Min. Alexandre de Moraes trazida pelo Desembargador DIAULAS a qual me filio:
“Liberdade de expressão, afirmou o Ministro Alexandre de Moraes, não é liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, das instituições e da dignidade e honra alheias! Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos! (STF, Petição 10.474 - Distrito Federal Relator: Min. Alexandre de Moraes, 20/07/2022).”

Flávia Valéria Nava Silva
Certificada pela Unic em digital currencies.
Mestranda em Blockchain e Criptocurrencies pela University of Nicosia (Unic) pelo departamento Institute for the future.
Pós-graduada em Direitos Difusos, Coletivos e Gestão fiscal pela ESMP/MPMA.
Pós-graduanda em Neurociência, psicologia positiva e mindfulness pela PUC-PR
Promotora de Justiça no Estado do Maranhão.
Pesquisadora em inovação, futuros, direito e cidadania digital.
Coordenadora do MPTrends
Comentarios