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As consequências de se ignorar um bom conselho: o desastre cruzado nos Cornos de Hattin

  • Foto do escritor: Demetrius Silva Matos
    Demetrius Silva Matos
  • 7 de jun. de 2022
  • 9 min de leitura

O que é um conselho? Segundo o dicionário, conselho "significa uma opinião ou um aviso que se dá a alguém", um tipo de alerta que uma pessoa sensata, com mais experiência ou conhecimento sobre um determinado assunto, faz a outra que tenta realizar alguma ação com probabilidade de consequências desagradáveis ou não.


Quase todas as pessoas ao longo da vida, já deram ou receberam conselhos sejam de pais, professores ou de amigos. Os conselhos podem ser entendidos como bons ou ruins. E isso dependerá tanto de quem deu o conselho quanto do contexto em que este será utilizado. Por isso que, ao se receber um conselho, se têm duas escolhas: ou acatá-lo ou ignorá-lo. Dessa forma, assim como acatar um mau conselho pode levar a uma tragédia (para si ou para aqueles que estão ao seu redor), ignorar um bom conselho também pode conduzir a uma calamidade semelhante.


Hoje veremos a história de como, ao se ignorar um bom conselho, conduziu-se um exército inteiro à morte e quase um reino (considerado sacro por alguns e maldito por outros) ao seu fim prematuro.


No ano de 1186, era sensato afirmar que ser um súdito do Reino de Jerusalém exigia uma grande dose de auto sacrifício e coragem, pois os desafios apresentados pareciam imensuráveis e intransponíveis, tanto externa quanto internamente. Os diversos territórios islâmicos independentes que antes faziam fronteira com o Reino (fundado no ano de 1099 durante a primeira cruzada, ocupando o que hoje corresponde à Palestina, Israel, Líbano e parte da Síria) estavam agora unificados sob o comando de um único homem: Salah ad-Din, mais conhecido no ocidente como Saladino, um homem inteligente e extremamente astuto, um grande líder militar e invejável administrador, que apresentou a maior ameaça ao Reino cristão no Oriente Médio desde a sua fundação, pois não seriam mais diversos soberanos islâmicos com suas próprias inimizades (combatendo uns com os outros muito mais do que contra os “invasores” cristãos), mas sim um Sultanato unificado que não malograria esforços em destruir o Reino cristão, visto como infiel para aquele povo.


A principal defesa do Reino contra esse vizinho hostil e poderoso recaía tanto no exército de Jerusalém quanto sobre as ordens militares religiosas, criadas pela ordem Papal, para auxiliar na defesa do assim chamado Reino de Cristo, sendo elas: a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários e a Ordem dos Cavaleiros Templários.


Devido a fatores populacionais, as forças cristãs estavam sempre em desvantagem numérica quando em comparação às islâmicas. Portanto, perder um cavaleiro ou até mesmo um soldado, em batalha, correspondia, por si só, a uma pequena tragédia, pois seria um defensor a menos para o Reino, sempre em constante cerco que, dificilmente, poderia ser substituído, circunstância esta que não preocupava as forças de Saladino.


Para além do inimigo externo islâmico, os cristãos da Terra Santa também possuíam diversas rixas e rivalidades, entre eles próprios, pelos mais diversos motivos.

Era praticamente impossível fazer um cavaleiro templário colaborar, ao menos com boa vontade, com um hospitalário.

Tais diferenças mesquinhas também existiam entre os nobres (que governavam os castelos e principados e que compunham o Reino) que por diversas vezes deram prioridade a suas ambições e ganâncias pessoais, mesmo que às custas dos territórios que, em tese, defendiam.


Dos nobres do Reino de Jerusalém, o mais ganancioso de todos era um francês chamado Reinaldo de Châtillon, cujo currículo incluía todo tipo de atrocidades e infidelidades possíveis, que iam desde o saque indiscriminado da rica província Bizantina do Chipre – o que ocasionou uma mácula quase irreparável entre os cristãos gregos e latinos, então, aliados –, passando pelas constantes quebras de tréguas feitas pelo Rei de Jerusalém com Saladino (ao saquear os mercadores islâmicos que passavam próximo ao seu território, o que abalou consideravelmente a diplomacia que os cristãos tentava manter com os muçulmanos), chegando à campanha de pilhagem pelo Mar Vermelho, através das rotas que levavam peregrinos muçulmanos a Meca e Medina, culminando com o afundamento de um navio cheio de peregrinos, matando todos.


Esta última ação atraiu para ele a ira imperdoável de Saladino e de todo o Islã. Reinaldo de Châtillon sempre escapou impune de todas as suas ações, mas o “Karma” não demoraria muito a ser cobrado.

No final de 1186, como se fosse a vontade do destino, uma enorme e extraordinária caravana islâmica, com destino à cidade de Damasco, estava próxima ao castelo cruzado de Kerak e não esperava ser atacada, uma vez que estava em vigor uma trégua de quatro anos entre os cristãos e os muçulmanos. Esse castelo pertencia a ninguém menos que Reinaldo de Châtillon que, como já podem esperar, simplesmente não resistiu à tentação de obter lucro fácil. Ele e seus soldados deliberadamente romperam a trégua e se lançaram sobre a caravana. Os que não morreram imediatamente foram aprisionados para serem vendidos como escravos (um destino comum tanto a cristãos quanto a muçulmanos capturados naquela época em que não se esperava obter um resgate). Reinaldo, então, conduziu a pilhagem de volta a seu castelo, em completo êxtase.


Saladino, que não estava nem um pouco feliz com a ruptura deliberada da trégua, ficou ainda mais furioso quando soube que essa quebra fora feita por Reinaldo de Châtillon, o homem que já havia quebrado tantas outras tréguas no passado e o que ele mais odiava de toda a cristandade.


Apesar deste grave insulto, Saladino ainda tentou a diplomacia, ao enviar emissários a Kerak, a fim de exigir que os prisioneiros islâmicos fossem libertados e o produto do saque, praticado por Reinaldo, fosse devolvido. O nobre cristão os ignorou por completo, fazendo com que os emissários fossem ter uma audiência com o Rei de Jerusalém, Guy de Lusignam, que er um outro problema.

Guy de Lusignam era Rei de Jerusalém apenas em função de seu casamento com a irmã do Rei anterior (Sibila, irmã do antigo Rei Balduíno IV), o que não lhe provia autoridade própria. Além do que grande parte dos Barões da Terra Santa não o respeitavam, visto que ele se mostrou um homem fraco e sem iniciativa em diversas ocasiões. Guy e sua esposa só alcançaram o trono devido a um esquema político ilícito (ele ignorou a vontade de Balduíno IV, expressa em seu testamento, que o excluía explicitamente da sucessão real), esquema este referendado tanto pelos Cavaleiros Templários quanto por alguns outros nobres, dentre eles Reinaldo de Châtillon. Embora o Rei Guy tenha concordado com os emissários de Saladino e exigido que Reinaldo cumprisse o pedido de Sultão, este novamente fez-se de surdo, uma vez que estava confiante que Guy não poderia exigir nada dele, tendo em conta o apoio que este lhe deu para se tornar Rei de Jerusalém. Após o fracasso da diplomacia, não havia outra escolha: o Reino de Jerusalém estava novamente em guerra contra Saladino.






Quando todos os nobres cristãos do Reino se reuniram para deliberar a respeito de como proceder com a guerra em uma conferência na Cidade de Acre, o conde Raimundo de Trípoli, o mais sensato dentre todos os presentes, deu um conselho a todos.


Como a guerra havia começado no verão, a vantagem estaria em posições defensivas que conseguissem reunir uma grande quantidade de comida e água; portanto, a estratégia seria que os cristãos deixassem que o exército de Saladino deliberadamente percorresse pelo Reino, sem serem confrontados diretamente, assim se cansariam e passariam sede devido ao calor do verão, intensificado pelo clima de deserto. Enquanto o exército islâmico encontrava-se completamente esgotado sob essas condições, os cristãos, descansados e hidratados, partiriam para o ataque, obtendo assim uma vitória fácil.


Um conselho extremamente sensato, não?

Pois saibam que foi completamente ignorado. O Grão-Mestre dos Cavaleiros Templários De Ridefort (que já nutria uma amarga inimizade com Raimundo de Trípoli desde muitos anos atrás) acusou-o de covardia e de ser um traidor a serviço de Saladino. Proclamou a todos que a única forma possível de se agir seria por meio de uma ação agressiva imediata contra os infiéis. O Rei Guy, que também estava em dívida com o Grão-Mestre pelo aval que este lhe deu em sua coroação, cedeu a seu pedido. Pronto, o exército cristão partiu para o encontro com Saladino na cidade de Tiberíades, que estava sob cerco.


Conforme o esperado, a marcha cristã foi uma completa estupidez do ponto de vista tático. Imaginem a imagem de milhares de soldados, vestidos com cotas de malha, junto a cavaleiros que usavam armaduras pesadíssimas e abafadas, marchando em um terreno desértico, desprovido da sombra de árvores, sob o sol do verão e longe de qualquer brisa (definição completa de calor). Então, Saladino, que não era nenhum estúpido, montou seu acampamento próximo à vila de Hattin, uma localidade que possibilitava tanto o bloqueio da rota dos cristãos rumo a Tiberíades quanto oferecia a seus soldados toda a água de que precisassem. O sultão simplesmente esperou que a fome e a sede que afligiam o exército cruzado fizessem o trabalho para ele.


Tendo em conta a situação desesperada em que se encontrava (com Saladino bloqueando tanto a rota que levava a Tiberíades quanto as rotas de água), o Rei Guy decidiu montar um acampamento em uma localidade próxima à vila de Hattin; tratava-se de um banco de areia estéril, localizado numa estrutura rochosa, que se erguia sobre dois cumes, sendo conhecido pelos locais como Cornos de Hattin. Era esperado encontrar um poço de água em tal localidade que, embora realmente existisse, encontrava-se seco naquele momento.


E, como era simplesmente impossível controlar soldados que estavam delirando de sede, muitos deles desertaram em busca de água, sendo facilmente abatidos pelos homens de Saladino, que lentamente começaram a cercar os Cornos de Hattin, cerco este que durou apenas um dia e uma noite antes da rendição dos sedentos e enfraquecidos cruzados.


Um fato curioso é que, pouco antes da rendição dos cruzados, Raimundo de Trípoli, o nobre que tinha dado um conselho rejeitado que poderia poupar a todos desse catastrófico destino, viu como os soldados rasos, que tentavam obter água, eram mortos ou capturados pelas forças islâmicas e tentou liderar um grupo para resgatá-los, mas o inimigo simplesmente abriu suas fileiras permitindo que ele e seus homens passassem por entre essas fileiras, para logo depois fechá-las novamente.


Uma vez sendo impossível voltar a se reunir com seus companheiros, Raimundo e seus homens decidiram deixar o campo de batalha e retornar para Trípoli. Muitos dos cruzados que permaneciam no cerco, ao verem essa cena, não tiveram dúvidas de que o Grão-Mestre De Ridefort estava correto ao acusá-lo de ser um traidor a serviço de Saladino.


Todos os nobres cristãos, bem como o Grão-mestre dos Templários (o Grão-Mestre dos Hospitalários fora morto em combate nos Cornos de Hattin, antes da rendição) foram levados à presença de Saladino, exceto Reinaldo de Châtillon (que fora quase que imediatamente decapitado pelo próprio Saladino). Os outros prisioneiros importantes foram poupados, mas tal ato de misericórdia não fora estendido aos homens que estes lideravam.


Pouco após a batalha, Saladino recebeu a visita de um grupo de muçulmanos Sufis vindos do Egito, ao qual foi proferido que eles teriam o raro privilégio de honrar Alá, ao decapitar centenas de soldados e cavaleiros infiéis. Se os Sufis (mais inclinados a honrar sua fé estudando o Alcorão do que matando pessoas de outra fé) não desejassem realizar tal ação, certamente demonstrariam receio de desagradar o Sultão; então, aceitaram as espadas que lhes foram oferecidas. Pode-se apenas imaginar o pensamento dos nobres cristãos e, principalmente, do Grão-Mestre De Ridefort, ao verem os soldados e cavaleiros que lideravam serem decapitados por carrascos amadores, que dificilmente conseguiam realizar a ação antes de seis ou sete golpes de espada.


Saladino sentia que Alá estava sorrindo para ele. O exército do Reino de Jerusalém estava completamente destruído; as ordens militares religiosas haviam perdido mais da metade de seus integrantes e todos os principais nobres cristãos eram seus prisioneiros. Com tal boa sorte, não hesitou em lançar-se para conquistar o resto do Reino, que agora era completamente incapaz de lhe opor resistência.


Uma a uma, as cidades cristãs que compunham a Terra Santa se renderam a Saladino, sendo que o prêmio principal, a Cidade de Jerusalém, a cidade mais sagrada do mundo para cristãos e judeus e a terceira mais sagrada para os islâmicos, rendeu-se em 1187, para grande êxtase dos muçulmanos e para grande horror dos cristãos. Jerusalém permaneceria sob controle islâmico por séculos, só trocando de mão novamente no ano de 1917, quando as tropas britânicas expulsaram a guarnição do Império Otomano que mantinha a cidade na Primeira Guerra Mundial.

O Reino de Jerusalém apenas não colapsou de vez devido a um erro de cálculo cometido pelo próprio Saladino, pois a cidade costeira de Tiro estava impondo mais resistência do que o esperado e era necessária uma grande logística que envolvia torres de cerco e catapultas. Como havia outros alvos mais fáceis, Saladino abandonou Tiro, temporariamente, e partiu para esses outros alvos. Com o que ele não contava era que os diversos refugiados das outras cidadãs cruzadas conquistadas fossem todos para a cidade de Tiro; e, quando a cidade tinha sido a última ainda não conquistada, Saladino regressou para terminar o serviço, deparou-se com uma grande guarnição de cristãos dispostos a lutar até o último suspiro.


Somando essa guarnição à dificuldade natural de conquistar a cidade, devido a fatores geográficos (Tiro era localizada praticamente no meio do mar, sendo ligada ao continente apenas por uma estreita faixa de terra), Saladino suspirou, ao perceber que perdeu sua chance de expulsar os cristãos, para sempre, do Oriente Médio, retornando resignado para casa. Isso permitiu que o Reino ainda existisse, e em breve novas cruzadas estavam sendo feitas, devido à onda de fervor religioso que contaminou a Europa após a perda da Cidade de Cristo. O Reino de Jerusalém (embora não tivesse mais a cidade de mesmo nome em seu território) resistiu por mais um século, colapsando apenas no ano de 1291, quando os egípcios conquistaram a cidade de Acre, o último reduto cruzado no Oriente Médio, mas isso é história para outro dia.


O que essa história tem a nos ensinar?

Ao ignorarem o conselho de Raimundo de Trípoli, os cruzados partiram a caminho de sua perdição, em grande parte pelo fato de o Grão-Mestre dos Templários De Ridefort ter convencido a todos de que o Conde era um covarde devido à inimizade que mantinha com Raimundo há muitos anos. Por isso, é sempre bom pensar duas vezes antes de aceitar ou recusar um conselho, pois assim como acatar um mal conselho pode ser catastrófico, ignorar um bom conselho pode ser igualmente pérfido.




Por DEMETRIUS SILVA MATOS

Advogado OAB/MA

Pós Graduado em Ciências Políticas pela Uninter

Autor do livro: "Direito na Ditadura - o uso das leis e do direito durante a ditadura militar"

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